segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Examinando Romanos 13.1-7 por Waldney Rodrigues

Introdução e Metodologia

A epístola de Paulo aos Romanos tem através dos tempos suscitado diversas investigações por vários teólogos, principalmente protestantes. Lutero, Calvino, Barth, Wesley, todos estes são exemplos daqueles que se dedicaram ao estudo deste texto bíblico para edificação da fé dos cristãos. Este é um dos motivos que me levaram a investigar um texto desta carta, uma vez que muitos a vêem como chave para se entender toda a Bíblia. A passagem qual dediquei meus estudos é Rm 13; 1-7 onde o apóstolo tratará da “submissão às autoridades”.

Minha preocupação com este texto de Romanos começou quando ao ler sobre o envolvimento da Igreja com a Política, descobri um uso dessa passagem que considero equivocado. Como descreve Robinson Cavalcanti:

Em vários episódios históricos, esse texto tem servido de justificativa para o apoio ou passividade dos cristãos diante de governos despóticos, sendo notório o caso de forte parcela da Igreja Evangélica Alemã diante do nazismo ou da Igreja Ortodoxa diante dos Monarcas absolutos e governantes muçulmanos ou comunistas. Cristãos norte-americanos e sul-africanos se omitiram de combater o racismo apoiando-se em Romanos 13. Pastores cubanos e russos vivem uma “igreja de sacristia” com base em Romanos 13. Nesses casos não sabemos bem onde termina a ortodoxia e começa a preocupação com a situação privilegiada ou o medo dos riscos.[1]

Tudo isso somado ao fato de várias Igrejas evangélicas brasileiras terem lançado mão deste texto bíblico para se aliar aos Governantes no período da Ditadura militar, me permitiu cogitar a possibilidade de estarmos interpretando essa passagem de uma maneira que não está refletindo a essência cristã da liberdade e fraternidade. Foi com este pensamento que iniciei as investigações.

A princípio busquei na internet algumas interpretações e nelas percebi a dificuldade dos que tentavam interpretar em se entender quem é essa “autoridade” a que o apóstolo se refere. Isso me levou a procurar um Novo Testamento Grego buscando acesso à palavra grega que originou essa tradução. Tarefa essa que, por conseguinte, me levou a procurar em dois léxicos, possíveis traduções para a palavra.

O problema não estava resolvido devido aos diversos usos e ocorrências da mesma palavra em todo o Novo testamento. Seria possível um número de traduções tão grande quanto o de significados para a palavra. Foi então que busquei no contexto imediato e no comentário da Bíblia de Jerusalém, na sua introdução às cartas paulinas, uma possível interpretação que fosse o mais fiel possível do contexto no qual esse trecho foi inserido, respeitando o perfil do autor e dos destinatários. Por fim também tive acesso ao clássico comentário de Karl Barth sobre esta carta. Todas estas ferramentas foram muito úteis na investigação e o trabalho final é o que se segue.

Examinando o Texto

“Cada um se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõe atraíram sobre si condenação. [...]” (Romanos 13.1,2 – Bíblia de Jerusalém)

A primeira pergunta que surge ao lermos o texto é “quem é essa autoridade”? Que existe uma clara relação de submissão aconselhada pelo apóstolo, isto é fato. Mas seriam estas autoridades os líderes da igreja como sugere alguns? Estariam inclusos aqui, os deveres dos filhos para com os pais? Ou teria uma abrangência ainda maior abarcando também os governos seculares que são exercidos sobre a sociedade civil a qual a igreja também faz parte? Qual a melhor interpretação?

A palavra grega empregada no texto é εξουσία, e possui muitas traduções possíveis. Ela mesma pode significar liberdade de escolha, di­reito para agir, decidir, como em Jo 10.18; At 5.4; Rm 9.21; 1 Co 9.4, 12; 2 Ts 3.9; Hb 13.10; Ap 13.5; 22.14. Habilida­de, capacidade, força, poder como em Mt 9.8; Mc 1.22, 27; Lc 10.19; At 8.19; Ap 9.19; 20.6. Autoridade, poder absoluto como em Mt 21.23, 24, 27; 28.18; Mc 2.10; At 26.12. Poder ou autoridade exercida por governantes, em virtude de seu cargo como em Lc 7.8; 20.20; 17.12; Lc 4.6; 23.7; Ef 2.2; Cl 1.13, Lc 12.11; ou ainda; poderes cósmicos acima e além da esfera humana, mas não separados dela como em 1 Co 15.24; Ef 1.21; 3.10; Cl 2.15. E agora? Que significado escolher? Por causa desse grande número de possibilidades, ainda não chegamos a uma resposta segura.

Alguns interpretam o texto como de uso puramente eclesiástico, entendendo que os cristãos não precisam se submeter às autoridades seculares, mas tão somente aos poderes instituídos pela Igreja. Os que assim o fazem tentam fugir de uma possível contradição, uma vez que o próprio apóstolo Paulo se opôs várias vezes aos governantes de sua época para conseguir avançar com a evangelização, tendo ele mesmo sido decapitado em Roma por causa disso. Mas devemos nos fazer uma pergunta, nossos antecessores não tiveram que se oporem as igrejas de suas épocas ? Como legitimar as atitudes dos reformadores diante de uma interpretação destas? A visão puramente eclesiástica não é o melhor caminho.

Seria possível um grande número de interpretações, mas embora estejamos diante de várias possibilidades de tradução, eu ainda ficaria com a idéia de que o apóstolo estava se referindo aos poderes civis. Isso por causa da temática que a literatura sugere. Ao lermos a carta, o Apóstolo faz um longo tratado sobre a salvação encerrando com um hino em louvor a Deus no fim do cap. 11. Então começa no cap 12 a tratar dos deveres dos que agora estão salvos para com este mundo e é logo após que vem o cap. 13. Creio que ele estivesse tratando de poderes civis sim. Talvez de forma bem abrangente, englobando os chefes de família e líderes da igreja. Mas sem excluir aqueles que nos chefiam diante do Estado.

Se esta conclusão estiver certa, então é legítimo o emprego deste texto nos moldes com apresentamos na introdução. Será? Não podemos chegar a uma resposta definitiva se não analisamos ainda o contexto em que o texto nasceu. Esta será nossa próxima tarefa, avaliar a conjuntura social em que este texto surgiu e se tornou válido para a Igreja em Roma. Bem como a possível forma com que o autor e destinatários entendiam o mesmo.

Método Histórico-Social

Um grande problema teológico que os Apóstolos tiveram que superar era o conflito entre os convertidos do judaísmo com os convertidos do paganismo. O desentendimento foi o que desencadeou a formação de teologias que pudessem solucionar as questões levantadas por ambos os lados. A preocupação com este conflito, que já havia sido tema da carta aos Gálatas, tornou-se tema da carta à Igreja que estava em Roma.

A Igreja qual nos referimos não fora fundada pelo apóstolo. Antes ele recebeu apenas informações por meio de pessoas como Áquila (Atos 18,2). Ao que parece, o apóstolo pretende ir visitá-la, contudo prefere preparar sua chega enviando antes, por meio de sua patrona Febe (Rm16,1), uma carta expondo a solução para o problema judaísmo-cristianismo, como acabara de fazer na carta aos Gálatas. Toda via , agora de forma mais ordenada e matizada .

A lista de nomes do cap. 16 indica que era dirigido a uma igreja que Paulo não havia fundado, o que exclui Éfeso como destinatária. De qualquer forma, eram romanos, estavam vivendo debaixo do poderio do império, e viviam conflitos internos a cerca de sua doutrina, principalmente a salvação e a postura do crente, agora salvo, diante deste mundo.

Como dito anteriormente, Romanos é um grande tratado sobre a salvação, que se encerra com o cântico do final do cap. 11. Quando começa o capítulo 12, é como se Paulo estivesse respondendo àqueles que se perguntaram: e agora que eu estou salvo? O apóstolo passa a descrever como se dariam as relações dos crentes. Sendo assim, não pode causar grandes embaraços aos crentes. Precisa ser mestre, mas também diplomata. Então os exorta a uma submissão às autoridades.

Talvez existissem alguns em Roma que pensassem que a liberdade cristã desse margem a uma postura anárquica. Se aventarmos isto, o texto começará a fazer sentido e poderemos entender por que o Apóstolo destaca tanto a posição das autoridades em relação aos subordinados. Paulo exorta o leitor a uma devoção, demonstrando a função de uma autoridade, bem como sua honra, pois, como citado no próprio texto, “são constituídas por Deus”. Parece que na mente de Paulo, uma autoridade compartilha da própria autoridade de Deus para governar.

Agora nós chegamos em um ponto crucial. Já que Deus compartilhou essa sua autoridade sobre os homens, com eles mesmos, constituindo alguns destes homens sobre outros, quer nos dizer isso, que devemos obedecer cegamente aos líderes seja quais forem? É certo que não. Incentivar uma obediência cega com certeza não era a intenção de um autor que escreveu em versículos anteriores: ”Não vos conformeis com este século”. [2]

A chave para entender este texto então, acredito eu que está na função das autoridades. E Paulo se preocupa em descrever, as autoridades foram constituídas para punir o mal e incentivar o bem, sendo elas mesmas instrumentos de Deus para isso. Logo deve o crente se conscientizar da importância funcional de uma autoridade e não se submeter-se[L6] somente[L7] por medo ou temor.[3] E o teólogo clássico Karl Barth parece concordar comigo, quando gasta parte de seu comentário de Romanos a descrever que “bem” era esse que as autoridades devem promover.[4] Além do mais, o texto bíblico em que nos focamos está cercado por outros que focalizam o amor cristão.[5] Tudo isso nos leva a crer que o foco principal não é a submissão, e sim o resultado gerado pelo bom trabalho dos que governam, quando atuam em harmonia com os subordinados.

Conclusões

Se o próprio texto já anuncia que seu objetivo não é a promoção do temor, mas a conscientização do crente, só esse fato já torna ilegítimo o uso deste texto para se obrigar a obediência de alguém. Quando pastores lançam mão deste texto para acusar algum membro desobediente (e não raras vezes eles confundem desobediência com discordância) de se opor contra Deus, desejando geram um tremor no subordinado, seu uso foi exatamente contrário ao propósito inicial do apóstolo.

Além disso, já que se tornou claro que o objetivo não é a submissão e sim o bem promovido pela harmonia gerada, temos então uma possível permissão para desobedecermos a essa mesma autoridade e até nos rebelarmos contra ela. Quando? No memento em que essa autoridade se tornar agente do mal. Quando ela deixar de promover o bem e se tornar falha, devemos resisti-la sim, por dever de consciência. A mesma consciência que nos faz obedecer, também nos faz opor, quando nosso principal objetivo é a promoção da benignidade e não do tremor . E é importante lembrar aqui o quanto as Igrejas têm errado no uso deste texto. Pregando o temor, quando deveriam incentivar a resistência e as reformas.

Por último, só nos resta observar que as autoridades são estritamente necessárias. Um pai que governa um lar, um pastor que lidera uma igreja, o prefeito de uma cidade, ou o chefe de seção de uma empresa. Todos estes são constituídos por Deus. Ao menos é o que nos parece propor o texto. Mas estes mesmos devem ser resistidos e advertidos, quando deixam de cumprir suas funções. E essa deveria ser a atitude de um cristão genuíno, um amor capaz de obedecer diligentemente na promoção do bem, resistindo ousadamente a ascensão do mal. Isso é o que fez dos apóstolos, mártires. Isso é o que fez de monges, reformadores. Isso é que nos vai fazer de subordinados, cidadãos. Aqueles que possuem direitos e deveres, e vão zelar para que os dois sejam realidades no seio da sociedade.

Bibliografia

Bíblia de Jerusalém. 5ª Edição revista e ampliada. São Paulo-SP: Editora Paulus, 2008.

Biblia sagrada. Traduzida por João Ferreira de Almeida, revista e atualizada. 2ª Ed. São Paulo-SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

STEPHANUS, Robert. The greek new testament 1550 textus receptus, With Textual Variants. Download in: http://www.moses.uklinux.net/pdf/bible/. Acesso em 25/11/2009

TUGGY, ALFRED E. Lexico griego-español del nuevo testamento. El Paso-TX: Editorial Mundo Hispano, 1996

GINGRICH, Wilbur. Léxico do novo testamento grego / português. Revisado por Frederick W. Danker Tradução de Júlio Ρ. Τ. Zabatiero. São Paulo SP: Edições Vida Nova, 1993

ALVES, Rubem. Religião e Repressão. São Paulo-SP: Edições Loyola, 2005.

CAVALVANTI, Robinson. Cristianismo e Política: teoria bíblica e prática histórica. Viçosa-MG: Ultimato, 2002.

FRESTON, Paul. Religião e Política sim, Igreja e Estado não: os evangélicos e a participação Política. Viçosa-MG: Ultimato, 2006.

BARTH, Karl. Carta aos Romanos. Tradução e comentários de Lindolfo K. Anders. Segundo a 5ª edição alemã. Fonte Editorial

Boletim TRIBAL CALL, Issue 8, PO Box 90, Berino, NM 88024 in:

http://74.125.93.101/search?q=cache:j0OJScQrpKQJ:www.embassyofheaven.com/newslett/news9604/news9604.htm&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=17 Acesso in 25/11/2009[L13]



[1] Cristianismo e Política pag. 85

[2] Rm 12.2 (Bíblia de Jerusalém)

[3] Ver Rm 13.5

[4] Comentário aos Romanos (pag. 750)

[5] “Que o vosso amor seja sem hipocrisia [...]” (Rm 12.9) e “Não deva nada a ninguém, a não ser o amor [...] (Rm 13.8) – Bíblia de Jerusalém


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